Já foram um local privilegiado para as compras dos lisboetas, mas as grandes superfícies vieram mudar os hábitos de consumo. Ir à praça comprar peixe ou legumes frescos caiu em desuso nas últimas décadas, mas os comerciantes dizem que os mais jovens estão a voltar. Em Lisboa há 28 mercados à procura de um lugar na vida dos lisboetas
Há-os de todas as dimensões e feitios. Com centenas de comerciantes ou com um único vendedor. Há os que se transformaram em spots da moda e o que vai dar lugar a um parque de estacionamento. Há uma estufa num telhado e uma Loja do Cidadão. Os mercados de Lisboa – os 28 mercados da cidade – andam à procura de um lugar na vida dos lisboetas. E alguns há que já estão numa relação – cada um destes espaços é uma realidade distinta, mas os comerciantes dizem, a uma voz, que há mais jovens a ir aos mercados.
O que é que Benfica tem?
É considerado o mercado de maior sucesso em Lisboa, a fazer aquilo que tradicionalmente fazem os mercados: venda direta ao público de produtos frescos. Até mesmo o Plano Municipal dos Mercados de Lisboa o diz: “é um dos melhores, ou até mesmo o melhor, em termos de procura e afluência de clientes.” Em finais de 2013 a taxa de ocupação situava-se nos 98%, mantendo-se atualmente acima dos 90%. De acordo com números da Junta de Freguesia de Benfica, entidade que gere o equipamento, o mercado é visitado, em média, por 3000 pessoas/dia. Cabe então perguntar – o que é que o Mercado de Benfica tem?
Comerciantes, clientes e responsáveis políticos avançam possíveis respostas ou, mais provavelmente, respostas cumulativas. É um dos maiores mercados de Lisboa, logo, com mais oferta. Está situado num bairro com elevada densidade populacional, mas que está longe de ser um dormitório, com muita vida e muito comércio de rua. Tem uma venda de vestuário e calçado no espaço exterior adjacente ao mercado.
Mas há outra coisa que o mercado de Benfica tem – problemas. As queixas são transversais a todas as praças: os tempos áureos já lá vão, as grandes superfícies, a “besta negra” dos mercados, vieram provocar um enorme rombo no comércio tradicional e a crise dos últimos anos fez o resto.
Glória Rodrigues vende peixe no mercado de Benfica há 30 anos. “Isto era uma das melhores praças que havia em Lisboa. Depois vieram os supermercados e isto veio a pique”, lamenta. Traduzido em números: “Hoje, a um sábado, fazemos 500 euros, num dia de semana fazemos 100. Dantes fazíamos 500 aos dias de semana.”
Noutra banca anuncia-se a “Rainha dos Caracóis”. Dá pelo nome de Laurinda Rosa, tem 74 anos, e alinha pela mesma ideia: “Chegava-se a vender, só ao sábado, quinhentos sacos de caracóis [de cinco quilos cada um].”
São dez da manhã de um sábado e, olhando em volta para a grande nave circular do edifício, nota-se que é agosto. Há muitas bancas vazias, coisa pouco comum, não são só os clientes que estão de férias, os comerciantes também. Mais trabalho sobra para os outros – as três pessoas que trabalham na banca de Laurinda Rosa (que, além dos caracóis, vende fruta e legumes) não têm descanso. A própria, mais afastada da azáfama pela idade e pela saúde, encarrega-se do marketing da venda em mercado: “Fruta e hortaliças no supermercado? Não vale a pena, menina, aquilo estraga-se num instante. Aqui levam tudo arranjadinho para ficar para a semana toda. Deixam-me o papel, a dizer o que é para arranjar ou telefonam-me a pedir, e depois é só vir buscar.” Em cada banca há verdadeiras redes informais de serviço direto ao cliente, relações que muitas vezes têm décadas – “Há clientes que são da casa. Tenho clientes que já são avós. Foram pais, vieram com os filhos, agora já vêm com os netos.” Orlanda Candeias, cliente, concorda com a apreciação: “Venho à praça buscar peixe, toda a hortaliça. Tudo aqui é de melhor qualidade que nos supermercados. Sou uma grande fã das praças.”
No Mercado 31 de Janeiro, João Cipriano Santos apressa-se a sublinhar que não é pelos clientes particulares que o negócio de fruta tem futuro. “Mantêm-se alguns clientes, mas o negócio decresceu muito. Se não fosse a restauração isto estava morto. Tirando o sábado [o dia forte dos mercados], há dias em que se faz 40, 50 euros a vender a particulares”.
Quando os mercados abrem as portas, às sete da manhã, há muito que começou o dia dos comerciantes. Vão chegando, a partir das cinco da manhã, já com os frescos comprados, para montar as bancas e aviar os clientes comerciais (e, nestes casos, são muitas vezes os próprios comerciantes que fazem as entregas). “Então à terça-feira temos muito trabalho. Não há mercadoria fresca desde sábado, sai muita coisa para a restauração. É chegar [do mercado abastecedor], descarregar, fazer faturas, às vezes nem temos tempo de montar as bancas”, conta Ana Paula Silva, mulher de João Cipriano. E se, dizem os dois comerciantes, já se vão notando sinais de recuperação, a crise dos últimos anos apanhou em cheio os cafés e restaurantes – e, em consequência, os mercados. “A crise mandou muita casa abaixo, clientes nossos…”, diz João Cipriano, notando que agora “se nota uma subida”. Sobre a origem desta inversão não tem dúvidas: o crescimento do turismo, que está a impulsionar a restauração, que por sua vez compra mais nas praças. Conclusão sorridente: “Se fosse verão todo o ano éramos ricos em Portugal”.
Os turistas também passam pelos mercados – levam “umas peças de fruta” – , mas há outra presença que se vem fazendo notar. Todos os comerciantes falaram disso – há mais jovens às compras, sobretudo casais.
Diz João Cipriano: “De há um ano para cá veem-se mais casais jovens.” E Maria Ondina Reis, de 52 anos, que vende carne no Mercado de Benfica: “Há mais gente nova. Esta terceira geração [de clientes do mercado] está a regressar.”Leia-se jovens, nos vinte e tais, trinta anos, muitos já com filhos pequenos. Anabela Barrinho, no Mercado de Alvalade Norte: “Há mais jovens a comprar peixe fresco, sem dúvida nenhuma. Muitos casais jovens, que sabem o que querem, sabem o que vêm comprar.” E, outra vez no 31 de Janeiro, pela voz de Olinda Barreiros, que vende peixe fresco, e com um dado adicional. “Os jovens estão mais interessados em cozinha, em culinária. E os mais interessados são os homens. Preocupam-se com a qualidade, com a frescura. Pedem dicas, perguntam como é que se faz”, conta a comerciante. (Uma frase que não passou sem comentários. “Que pena que a mim não me calhou um desses”, ouve-se da banca do lado).
Frescos sim, mas no prato
Há dois mercados em Lisboa onde a terceira geração (e, provavelmente muitos da segunda e alguns da primeira) assentou arraiais. Só que não foi à procura de frescos… mas de cozinhados.
O centenário Mercado da Ribeira é hoje um dos espaços de restauração mais animados da cidade – no mês passado recebeu uma média diária de dez mil pessoas. São sobretudo turistas (cerca de 70%, segundo a direção do espaço), o que é fruto da época – no inverno a percentagem andará equivalente com a de portugueses.
A história da reabilitação da Ribeira tem sido sobejamente contada. A revista Time Out andava à procura de uma nova redação, o Mercado ia ser parcialmente concessio-nado. Uma coisa foi dar à outra ou mais ou menos – a revista não precisava de sete mil metros quadrados de redação, mas foi ver o espaço e daí nasceu um “e porque não?”. Ganha a concessão do mercado, a Time Out convidou para a Ribeira os espaços/marcas/chefs com melhor apreciação dos críticos da revista – conceito que se mantém.
Catarina Mendonça Ferreira, curadora do mercado, lembra que no início o projeto foi recebido com desconfiança pelos comerciantes. “As pessoas estão aqui há 30, 40 anos. Passaram por muitas obras, muitas intervenções e, nos primeiros tempos, as obras que fizemos [e que incluíram a reabilitação da parte do mercado tradicional] foram intensas. No início as coisas podem ter sido um bocadinho difíceis, mas agora, passados dois anos, são ótimas”, diz Catarina, para concluir: “O mercado está mais cheio do que alguma vez esteve e o mercado tradicional também ganhou bastante com isso.”
Experiência semelhante é relatada em Campo de Ourique, onde não só o mercado tradicional continua, como está lado a lado com a parte gastronómica. “Éramos vistos como os maus da fita. Durante um tempo, com as obras, estragámos o negócio”, admite Diogo Coutinho, um dos sócios da MCO, a empresa que gere o Mercado de Campo de Ourique. Depois as coisas mudaram. E como é hoje a convivência? “É engraçada. Tem dias”, responde, a rir.
Ao contrário do que acontece na Ribeira – os responsáveis dos dois lados dizem que os dois mercados não são concorrenciais – Diogo Coutinho garante que “mais de 80%” dos frequentadores do Mercado de Campo de Ourique são portugueses. Ao longo do último ano foram 1,7 milhões, garante o responsável do espaço, que não tem dúvidas sobre o destino dos mercados tal como existiram nas últimas décadas: “É impossível sobreviverem. Os mercados tradicionais têm de se reinventar, criar um conceito próprio”.
O mercado tradicional sobrevive?
“Que maravilha de robalo, olhe para esta cor. Mas que bom aspeto. Disto não se vê no supermercado.” O robalo tão elogiado pela cliente – que era um robalo do mar, a 17,99 euros, e continuou na banca – é da “Banca da Bela”, no Mercado de Alvalade Norte.
Anabela Barrinho tem uma história semelhante à de muitos comerciantes dos mercados, habitualmente negócios familiares, que passam de pais para filhos. Tem 44 anos, desde os 12 que está nesta vida, então a acompanhar a irmã mais velha. Não tem uma perspetiva negativa do negócio: “Agora até se vende mais peixe do que se vendia há uns anos.” Como noutras bancas “a maior parte das vendas é para a restauração”. E a relação com particulares é na base da confiança – “ao sábado metade das vendas é feita por telefone”. Inserido num bairro de classe média/média-alta, Anabela diz que a crise também passou por aqui. “Sentiu-se, sim. Sobretudo por causa dos cortes nas pensões. E muita gente que ajudava os filhos, que estavam desempregados.” Falar da vida é uma atividade comum nos mercados . Casamentos, separações, filhos que saem de casa, netos que nascem – as notícias vão sendo atualizadas à semana. “Às vezes somos um bocadinho psicólogos”, diz uma comerciante de Benfica.
Em Alvalade Norte, como já sucede noutros mercados da cidade, os comerciantes tradicionais partilham o espaço com o LIDL. Pelo menos no caso de Anabela sem grandes queixas: “Connosco não interferiu. Estávamos com medo, mas não.” Refira-se que, nestes casos, as superfícies comerciais ficam impedidas de comercializar os produtos vendidos no mercado. Numa banca de produtos hortícolas, no mesmo mercado, Abílio Cabo também levanta a questão dos supermercados. “Não têm 10% de produto nacional”, critica, afirmando que, em termos de preços, os mercados não têm qualquer hipótese de concorrência com as grandes superfícies: “Conseguem vender a um preço a que nós não conseguimos comprar.” À mercadoria juntam-se os custos de uso do mercado. Anabela Barrinho faz as contas: “Temos de pagar as bancas, a câmara frigorífica paga-se à parte, o gelo paga-se à parte, o parque também. São setecentos e tal euros/mês.”
2,5 a 5 milhões para os mercados
Alvalade Norte é um dos mercados prestes a entrar em obras, para requalificação do espaço (que vai passar a integrar um parque infantil), mas sem alteração da filosofia. O mesmo no Mercado de Benfica. “O objetivo é manter a génese do mercado, mas modernizá-lo. O mercado é muito vivo na sua componente retalhista, tem muita procura, mas está a precisar de modernização”, diz ao DN Inês Drummond, presidente da Junta de Freguesia (com a reorganização administrativa 24 mercados passaram para a gestão das juntas). “Claramente, a procura tem diminuído ao longo dos anos. Temos de fazer uma intervenção de fundo, urgente, que dê uma melhor atratividade ao espaço”, acrescenta a autarca. A intervenção será estrutural, mas também estética: “Precisamos de bancas mais arranjadas, mais atrativas. Está estudado que dois terços das decisões são tomadas no interior das lojas e em 15 segundos”. As obras estão ainda na fase de aprovação do projeto de arquitetura e Inês Drummond aponta para um custo na ordem dos dois milhões de euros – “Gostava muito que, no próximo ano, já se pudesse avançar com a empreitada.”
Nem só Alvalade e Benfica vão para obras, muito longe disso – boa parte dos mercados de Lisboa foram recentemente, ou estão para ser, intervencionados. Alguns vão mudar de funções, outros acrescentar novas valências. Entre os investimentos já realizados e os que vão concretizar-se mais proximamente, a Câmara de Lisboa conta gastar nos mercados da cidade cerca de 2,5 milhões de euros. Mas faltam neste montante os dois grandes investimentos previstos para os próximos anos – Benfica (para já só estão contabilizados os custos de elaboração do projeto. A Câmara diz que ainda não tem estimativa para o custo total). E falta também o Mercado dos Olivais, outro que vai sofrer grandes obras de reabilitação. O que significa que o investimento em curso de 2,5 milhões pode vir a duplicar.
Em Benfica, como em Alvalade, mesmo acrescentando novos espaços comerciais e de restauração aos mercados, o objetivo é manter, como atividade principal do equipamento, a venda de produtos frescos. O mesmo acontece com o 31 de Janeiro e o Mercado de Arroios, dois espaços que já tiveram obras, mas que se preparam para experiências novas. A que se segue é mesmo absolutamente nova.
Estufa hidro… quê?
O telhado do Mercado de Arroios é uma superfície lisa, com dois mil metros quadrados de área. E porque é que isto interessa? Porque a partir do próximo ano este espaço vai receber uma estufa hidropónica. Ou seja, vai servir para cultivar produtos hortícolas unicamente em água, sem terra a servir como solo. Nuno Baltazar, biólogo, um dos dois fundadores da Lisbon Farmers, empresa responsável pelo projeto, sublinha que a hidroponia já existe em Portugal (na cultura de hortícolas e de morangos), a novidade é trazer o conceito para o telhado de um mercado – Arroios será um “mercado hidropónico, um conceito que não existe”. A ideia passa por “guardar uma parte da produção para comercializar no mercado”, dado que o total “será muito superior às necessidades” de Arroios. Neste caso, o investimento (as obras deverão começar já em outubro e terminar em janeiro do próximo ano) fica a cargo dos privados, num mercado que foi alvo de reabilitação recente, com um custo de 800 mil euros.
“Mercados são essenciais”
Duarte Cordeiro, vice-presidente da Câmara a de Lisboa , com o pelouro dos mercados, sublinha que o investimento nestes equipamentos vem na mesma linha de outras preocupações da autarquia: “Muitas das nossas principais apostas têm muito que ver com a revalorização da vida de bairro. O programa “Uma Praça em Cada Bairro”, a promoção da mobilidade suave… Os mercados são essenciais na vida dos bairros, são infraestruturas bem localizadas, com um papel importante na promoção da vida local”.
Lisboa tem 28 mercados, muito diferentes entre si. O mais antigo é o de Santa Clara, construído em 1877, logo seguido pelo da Ribeira, erigido em 1882. São os únicos do século XIX – Campo de Ourique já foi levantado em 1934.
O maior mercado de Lisboa é, de forma destacada, o da Ribeira. Alvalade Norte, 31 de Janeiro, Benfica, Arroios e Campo de Ourique são também de grande dimensão. A venda de produtos hortofrutícolas é a atividade mais destacada (29%), seguida pela venda de peixe fresco (15%). A restauração e bebidas (8%) e a venda de produtos não alimentares (5%) suplantam os talhos (4%). Já a ocupação dos espaços por parte dos comerciantes revelou uma tendência decrescente até 2014, ano em que a tendência se inverteu, registando uma subida significativa. Há 777 comerciantes nos mercados de Lisboa, com uma idade média de 59 anos. Dados que constam do Plano Municipal dos Mercados de Lisboa 2016-2020, atualmente em discussão pública, e que traça um retrato envelhecido dos vendedores – “em cerca de 50% dos mercados municipais a média de idades é igual ou superior a 60 anos, com falta de formação nas áreas dos seus negócios”. Mais: “O típico comerciante de um mercado tende a acomodar-se, não tem tendência para se aventurar em novos desafios nem procurar novos negócios ou parcerias. Em contraponto são afáveis, criando laços quase familiares com os clientes.”